A terra apresenta regiões onde o clima e o sistema de chuvas
são bem característicos e marcados, levando a elas uma certa homogeneidade,
caracterizando os biomas.
No nordeste do Brasil, por exemplo, floresce a caatinga: o
único bioma exclusivamente brasileiro, apresentando um clima – denominado
semiárido – que divide o ano em "estação das chuvas" e "estação
das secas". Esta última – melhor denominada de estiagem – não é, absolutamente, a famosa
"seca do Sertão", responsável pelo quadro desolador que vemos desde
sempre nos noticiários.
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A Caatinga
(imagem em http://www.mma.gov.br/biomas/caatinga) |
A verdadeira seca – longa e devastadora – se dá quando a
estiagem invade a estação das águas, por um ou vários anos, com baixa ou
elevada intensidade, abrangendo apenas parte do sertão ou
extrapolando-o. É chamada tecnicamente de seca climatológica, recorrente na
caatinga há muitos séculos.
Dentro desta dinâmica agressiva, espécies evoluem ou são
extintas, se adaptam ou morrem. Indubitavelmente, um lugar que apresenta estas
características depende de seres altamente resilientes e adaptados para seguir
habitado.
O sertão e os sertanejos há muito sentem na pele esta
realidade, e tem sobrevivido: periodicamente, com a seca murcham e com as
chuvas renascem, vigorosos e produtivos, devido à força de uma genética
selecionada, à persistência e ao conhecimento acumulado dos que amam seu chão e
na sua terra querem ficar.
Por isso se diz que o sertanejo é um bravo; por estes
motivos, o sertão sempre enche de esperança os seus de que tudo vai, sempre,
melhorar.
Não há como refutar Euclides
da Cunha: a vida na caatinga é mesmo para os fortes!
Mesmo assim, há que se dizer: a história registra momentos
difíceis e nada poéticos.
O mais dramático destes momentos foi a grande seca de
1887-89, onde se registrou a morte de inacreditáveis 500.000 pessoas, e a soma
de 2 milhões de flagelados. Um recenseamento feito logo após estes dias
catastróficos (1890), mostrou que o Brasil possuía uma população total de 14,3
milhões de pessoas. Portanto, mais de 3% dos brasileiros da época pereceram
nesta seca, o que corresponderia hoje, proporcionalmente, a quase 7 milhões de
mortes em agonia!
É possível imaginar tamanha catástrofe?
Desde aqueles dias, se registraram muitas outras secas marcantes na história nordestina. Contudo, quero chamar a atenção particularmente para o período de 1979 / 1984, em que ocorreu a
mais longa e abrangente seca da história documentada do Sertão, onde, segundo dados da Sudene, se registrou, novamente, um número inacreditável de mortos: 3,5 milhões de pessoas – especialmente crianças – devido não só à fome e à sede agudas, mas também à doenças advindas da desnutrição.
Vale o destaque:
TRÊS MILHÕES E QUINHENTOS MIL SERTANEJOS MORTOS!
Como se vê, quase um século depois o quadro das vidas secas ainda
predominou no cenário sertanejo.
Se esta foi a parte mais triste desta tragédia, existe uma mais sombria; a tristeza se transforma em revolta com o fato de que o dinheiro que o Governo Federal
enviava para auxílio dos flagelados desta tragédia praticamente desaparecia no caminho, indo irrigar bolsos malévolos e não chegando aos necessitados. Sim, meus caros compatriotas: muita gente enriqueceu às custas
de milhares de mortes agonizantes, principalmente de crianças, como foi dito.
A face mais triste da raça
humana se revela neste episódio...
Assim, uma questão emerge ao se lançar um olhar para
estes fatos históricos: existiria a possibilidade de uma seca da magnitude da
de 1887, com tão trágicas consequências, voltar a acontecer? Quanto tempo o
sertanejo, hoje, poderia resistir? Porque não se houve mais falar em flagelados
em uma gravíssima seca de 3 anos?
Enfim, o que mudou das secas passadas para as atuais? O que
foi feito e o que deve ainda ser realizado?
Atualmente, a situação climatológica não é nem um pouco melhor. Desde 2012 a região vive, novamente, uma seca persistente, amenizada aqui e ali por chuvas localizadas. Já são mais de mil municípios em estado de emergência (2014).
Algumas conclusões podem ser feitas com base nos dados acima e em outros estudos. A primeira é que, indubitavelmente, qualquer país que deseja ser justo e
se desenvolver não pode deixar prevalecer um ciclo "hidro-ilógico" em suas terras, ilustrado na figura abaixo:
Outra conclusão inevitável é a de que o sertão nordestino e
seu povo possuem, entre muitos valores, um alto grau de resiliência – termo
este que define a capacidade de pessoas e sistemas de retornar a uma condição
anterior ou de se adaptar, se necessário, a novas realidades, após a ocorrência
de situações muito críticas (destrutivas e/ou disruptoras), como é o caso das secas
prolongadas.
Contudo, um olhar sobre o caso clássico da região nordestina mostra
que somente esse valor não basta. Levando-se em conta todas as potencialidades
humanas – físicas, cognitivas e econômicas – vê-se que esta resiliência sempre teve um
caráter de pura sobrevivência e, apesar de adaptado às duras condições do
semiárido, o sertanejo pagou um alto preço para transpassar vivo a seca: a
miséria, a fome, a desnutrição e o subdesenvolvimento
físico/cognitivo/econômico correspondente, construindo um círculo vicioso que,
junto com a seca natural, sempre impossibilitou que o sertanejo saísse no mesmo patamar desta condição natural negativa (seca prolongada).
É a seca socioeconômica, é a resiliência "a menor".
Deste modo, no sistema que prevaleceu por muito tempo e que
ainda se vê (em menor grau) – chamado sob determinadas condições de
"indústria da seca" – a sobrevivência teve um alto custo para as
potencialidades humanas, impedindo-as de florescer. Enfim, uma resiliência
de maior qualidade deve ser construída, onde, a exemplo de outros lugares no mundo com
problemas parecidos e que conseguiram contorná-los, não exista apenas o caráter
mínimo de continuidade da vida, permitindo que o crescimento da economia e a
efervescência cultural não se interrompam mesmo no caso de secas prolongadas.
Esta nova resiliência "a maior" é possível para a
região e altamente salutar para todo o país, contribuindo para este com todas as riquezas
que o crescimento de um povo forte e criativo pode trazer. Não basta ter o
básico para sobreviver, devendo-se buscar também o crescimento econômico e de saber, e que
assim novas riquezas possam ser criadas e movimentadas.
Para que esta nova realidade – já há algum tempo em curso – se
consolide, estou convencido da necessidade de se utilizar todas as soluções de
caráter estrutural propostas até hoje, para que o líquido da vida irrigue
todas as potencialidades. São elas:
Revitalização
- Retenção - Gestão - Transposição.
Gosto de chamá-las de a "quadra redentora" – tema este que será
melhor desenvolvido em outro artigo.
As três primeiras são unanimidades entre as vozes, técnicas
ou não ,que clamam ações; já a última – secularmente controversa – nem tanto.
Uma questão pertinente: é necessária a quadra, ou apenas o
trio inicial (isto é, revitalização, retenção e gestão) daria conta do recado?
Os fatos que a história registra, os exemplos de outros
países, e o quadro cada vez mais seco que se pinta para o futuro devido à
novidade terrível construída pelos humanos, denominada de AQUECIMENTO GLOBAL,
indicam que não se pode furtar de nenhuma destas soluções.
Este é um bom motivo para que se realizem todas as ações já
identificadas como necessárias, mesmo com contraposições. Não só: arrisco dizer
que, neste caso, se deve exercer o pessimismo e pensar em quadros bem ruins num
futuro de médio prazo, e que se vá verificando desde já a viabilidade de outras
transposições e de altos investimentos na retenção em escala nacional.
Neste
futuro possível, ninguém poderá se considerar dono das águas e, em muitos
lugares, levar de onde abunda para onde carece será a única alternativa.
Por outro lado, mesmo diante deste quadro, ao se estudar o assunto da
transposição do Velho Chico, vê-se rapidamente que esta opinião não é
compartilhada por boa parte dos estudiosos e interessados no tema, que se
contrapõe à transposição. Durante a maior parte da minha revisão sobre o
assunto, este fato me causava certa perplexidade, pois meus estudos me traziam
razoável certeza – a meu ver embasada – da necessidade desta obra.
Penso que, agora, com o tema maturado, consegui minha
resposta: para esta obra ser aceita por vozes qualificadas e honestas em sua
opinião, os investimentos nas outras três ações clamadas jamais poderão ser
preteridos – o que, indubitavelmente, é uma causa justa, inteiramente
verdadeira e absolutamente necessária, inclusive para se ter algo para
transpor.
É este, concluída a transposição, o tema central que deve ser
discutido quando se falar no sertão nordestino. Não se deve deixar fugir da mesa
esta pauta, devendo estar sempre na mente dos que comandam o país, sob pena –
se não houver este direcionamento – de comprometer nosso futuro como nação próspera.
Cabe a nós vestirmos
o uniforme dos “lembradores/cobradores”.
Por outro lado e para se fazer justiça, deve ser dito que muita
coisa já foi feita. O nordeste atual não é o Nordeste do século XIV – e nem
mesmo das décadas passadas. A possibilidade da ocorrência de mortes em massa
foi contornada pelas obras já realizadas, pelos programas assistenciais do
governo, e pela logística de socorro durante os períodos de longa seca. Por
exemplo, a retenção permitiu o armazenamento de, aproximadamente, 70 bilhões de
litros de água, conseguidos através do maior processo de açudagem do mundo,
e foi concluído o projeto “um milhão de cisternas” em agosto de 2014. A transposição
se completa no final de 2015, segundo as previsões.
É água suficiente para muitos anos de seca, e expansão de uma agricultura similar ao do Vale do São Francisco, gerando riquezas e empregos.
O que se conseguiu não é pouco, devemos reconhecer – ou sendo
justo mais uma vez: é surpreendente!
Entusiasticamente escrevo que não existe mais fome aguda generalizada, saques, êxodo. Sim, as políticas de combate e convivência com a seca mudaram a realidade nordestina, e também o nível de resiliência que é
exigida.
Mesmo que, neste momento, o clima não seja favorável e a seca, de novo, mostre sua cara, o Brasil está conseguindo dar a base necessária para que o Nordeste saia deste círculo vicioso de resiliência mínima e construa uma outra, mais positiva e abrangente: a socioeconômica – uma transposição de um patamar a outro em que a que está sendo realizada no Velho Chico é apenas uma parte.
Contudo, repito: daqui para frente uma nova etapa deve ser buscada (ou
tudo não vai por água abaixo): toda a sociedade deve pressionar por um
investimento massivo na revitalização e na gestão. A primeira ação garantirá que as
nascentes, os rios e açudes não sequem; a segunda que a água chegue a todos os que
dela necessitam. A primeira representa o futuro; a segunda o presente.
Que esta seca, agora assombrando também o sudeste, sirva de
lição, e não caíamos, novamente, no ciclo hidro-ilógico!
Em conclusão: é necessário (e sempre foi) que o Brasil atue fortemente em uma estratégia
coordenada de combate e convivência com a seca, e que as lições dos tempos passados e do tempo presente
não sejam esquecidas. O Brasil inteiro deve cobrar esta ação de todas as
esferas de poder, pois dela depende o futuro que todos queremos: de abundância
e crescimento sustentável para todo o país e a totalidade de nosso povo.
É esta a grande vereda da luta do semiárido – e, novos
tempos, do país inteiro (vide São Paulo) – que ninguém pode ficar indiferente.
Para a região nordestina, acredito que no dia em que esta condição ideal de segurança hídrica para a
região expressar sua totalidade, além de construirmos um país mais resiliente,
todos poderemos ver uma explosão das potencialidades daquele povo e de suas
terras: a expressão libertadora de toda energia acumulada através de séculos de
mera – quando não falha – sobrevivência.
EdiVal
11/10/2014