sábado, 22 de novembro de 2014

As Transposições do Rio São Francisco na Crônica de uma Bióloga Encantada

“Ter um destino é não caber no berço onde o corpo nasceu, é transpor as fronteiras uma a uma e morrer sem nenhuma” 
(Miguel Torga).

O termo transposição pode ser definido como o ato ou efeito de ascender, escalar, sobrelevar. Em um sentido metafórico, pode ser colocado como a superação dos obstáculos, onde o personagem – herói ou vilão – consegue transpor-se para um novo patamar (interno ou externo, material ou imaterial): perfeita figura de linguagem para todos os tipos de saltos quantitativos/qualitativos. Metáfora, curiosamente, pode ser definida como a transposição do sentido de uma determinada palavra para outra, sentido este que, inicialmente, não lhe era pertencente – coisa relevante neste texto.

Mas deixemos de lado outros prolegômenos definitórios e vamos logo ao que interessa: a protagonista desta história é Juliana (Oliveira, J.S.B.). Ela nasceu no Mato Grosso do Sul e veio aqui pro Paraná estudar na Faculdade. Bióloga por vocação, logo que se viu com o canudo diploma na mão, aventurou-se em um mestrado na Agronomia; na agro – sem querer ser diferente mas já sendo (como sempre...) – escolheu um tema de estudo para sua dissertação tão sustentável quanto controverso: Homeopatia em vegetais! E antes que falem: sim! Ela obteve resultados positivos (não infinitesimais), parte recém publicados no paper Activation of biochemical defense mechanisms in bean plants by homeopathic preparations”.

Depois de defender seu mestrado com doses cavalares de apresentação, agora ela quer ser doutora; e para variar (adivinha!) sua tese também não tem uma hipótese de estudo muito comum não, versando sobre o uso de Elementos Terras Raras na agricultura. Controversa e corajosa, essa menina!

Uma bela morena, diga-se de passagem, cheia de vida. Pesquisadora, atleta e pianista!

E minha garota, que besta é que não sou!

Quer saber mais sobre as revolucionárias pesquisas desta jovem cientista? Vide Currículo Lattes, claro!

Mas como não só de ciência que se vive uma vida, de vez em quando dá tempo da gente bater um papinho, e por estes momentos sei bem que ela não gosta de política – demonstrando certa irritabilidade indisfarçável ao falar no assunto; também não concorda com muitos programas governamentais, e com certeza se posicionaria na oposição, se política fosse. Dificilmente conversamos estes assuntos (questão de estratégico bom senso...).

Sobre o Nordeste, estava impresso em seu cérebro o que mora na cabeça da maioria dos brasileiros: a imagem da seca, da desolação, da subnutrição e da pobreza; dos coronéis, da indústria da seca, do voto de cabresto – construída ao longo dos séculos por uma história de opressão por parte da natureza e dos homens – em uma região onde a escassez seria, além de água, alimentos e recursos, também de tecnologia, investimentos, cultura e “vergonha na cara” por parte dos donos do poder.

Quanto à polêmica obra de combate (ou de convivência) com a seca denominada “Transposição do Rio São Francisco” (TRSF), até recentemente sua impressão era de que se tratava de mais uma obra faraônica de cunho político/eleitoreiro do Governo Federal, totalmente desvinculada da realidade e cujos recursos poderiam ser utilizado de forma mais eficiente em outros projetos. Também estava em sua mente a “certeza” de que a obra não obteria uma aprovação de uma área técnica especializada séria, e que acabaria se configurando, regionalmente, como mais uma fonte de enriquecimento de “coronéis” e moeda de compra de votos.

Como bióloga, somava-se às questões citadas outra que era (como não podia deixar, por coerência, de ser) uma das suas maiores preocupações: a ecológica! Estaria havendo um cuidado mínimo quanto ao impacto ambiental? Também questionava, academicamente centrada como é: foram feitas parcerias com universidades? Finalizou, com ênfase e consciência social: privilegiar-se-ia, acima de tudo, o benefício coletivo? (Não é um primor?).

Mas em uma recente viagem com objetivos acadêmicos até a fonte dos acontecimentos – onde correm as integradoras águas do Velho Chico – ela se viu depositária de muitas informações privilegiadas, o que a forçou a mudar muito pontos de vista pessoais sobre este tema. Contando como foi esta aventura, ela me trouxe preciosos elementos e ajudou a consolidar e colapsar outros pontos, e espero que, com este texto, novas percepções sejam levadas também aos leitores do mesmo.
Esta viagem foi realizada no primeiro semestre de 2014 onde, em uma reunião para apresentação de dados na Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF), palestrar Juliana foi: deixou pra trás todo o marasmo do Paraná, comprou uma passagem e foi direto a Petrolina, Pernambuco. E assim nossa heroína sentiu-se, repentinamente, como verdadeira personagem de um romance de Graciliano Ramos em épicas histórias nas veredas do grande Sertão.

Mas, antes de tudo, viveu seus dramas de estudante-profissional-cientista: apresentou, assistiu, ensinou, aprendeu; cumpriu com sucesso sua missão acadêmica no projeto que, à época, participava: o SISBIOTA Brasil - Sistema Nacional de Pesquisa em Biodiversidade – "bioprospecção de fungos sapróbios no PPBIO/ semi-árido nordestino para o controle de doenças infecciosas em plantas: indução de resistência" (ufa!).

Apresentação de resultados da pesquisadora ( e minha namorada nas horas vagas) Oliveira, J.S.B., na UNIVASF (Petrolina, PE), dentro do programa SISBIOTA Brasil.

Finalizada com êxito sua missão – mas ainda na condição de profissional/cientista – impressionou-se com a universidade: equipamentos de ponta (“ow! Novinhos em folha”, disse), laboratórios muito bem organizados, equipe de pesquisadores ativos, entusiasmados e em pleno desempenho de suas funções “pesquisísticas”. Em suma, muita grana rolando, bem aplicada na montagem dos laboratórios, na formação de um corpo acadêmico forte e também na consecução de projetos, muitos direcionados ao desenvolvimento e preservação do sertão. Foi o que ela viu e, eufórica, retornando me contou (depois da matada épica de saudades, claro!).

E pelo que se sabe este não é um fato isolado! Tanto que, neste ambiente acadêmico que estamos inseridos, a grande fonte de empregos – por conta das novas universidades que estão sendo abertas ou pela ampliação do número de vagas – corre à boca miúda: aumenta conforme subimos em direção ao Norte! E já vou avisando: ela também pretende brigar por sua vaga quando, num futuro próximo, for a “Doutora Juliana” (chique no último!), sobrando, para todos mais, n-1 vagas, capiche?

Esta foi a primeira transposição pessoal da nossa protagonista:

Da região seca não só de água, mas também de saber, para um surpreendente Nordeste irrigado de conhecimento e ciência.

Mas depois, Juliana Batista, “animada pra guerra”, foi lá fora excursionar – no campus e no campo (pois boba ela não é!). Tomada como sempre por seu característico sentido de apreciação turística e curiosidade irrequieta, procurou fazer muitas perguntas e participar o máximo possível – assumida amante das interações interpessoais que é – do que é típico e pitoresco da região e do seu povo.

Ju interagindo (gente, duas dela na janela!).

No vale, virou encantada, e pode coletar novos dados que mudaram mais de seus pontos de vista: viu um Nordeste de paisagens incríveis (sim, fora do litoral!); já do avião havia se impressionado com um verde inesperado. Nos caminhos sertanejos que passou, se deparou – entre tantas coisas que não cabem aqui – com os tais jegues trocados por motos por seus donos (recém ascendidos à classe média) que, abandonados, vagam pelo sertão, tema de várias matérias da mídia. Mas uma das experiências que mais a impressionou foi comer uvas dulcíssimas direto no pé debaixo de pomares gigantescos, capazes de produzir duas vezes por ano; além disso, com manejo e novas variedades, o Vale poderá vir a produzir, brevemente, uvas o ano todo! Soube também das pesquisas de desenvolvimento de novos produtos com esta paradisíaca fruta, como a produção de suco de uva (verdadeiramente) 100% integral e vinhos orgânicos, para a crescente indústria de processamento de alimentos da região.

Viu também muitas plantações de manga, goiaba, seriguela, abacaxi e outras mais, todas com saúde e produção excepcionais, proporcionadas por incentivos, pesquisa científica, irrigação franciscana e muito sol tropical!

Foto tirada em 26-03-2014, em Juazeiro (BA), mostrando belas paisagens...

Só não gostou de saber que a maior parte do que é produzido é exportado, mas reconheceu a riqueza que isso traz para a região.

Esta foi sua segunda transposição pessoal:

Da imagem estéril, amarga e cinza da terra seca, para um quadro mais fértil, doce e verde da terra molhada.

Mas as surpresas não pararam por aí! Ela teve a ímpar oportunidade de conversar com pesquisadores diretamente envolvidos com o projeto da TRSF, e pôde sentir o amor e entusiasmo que eles manifestavam por estar participando de tal empreitada. Claramente, essa foi a parte que mais a marcou e inspirou.

O professor que recebeu os alunos e coordena parte do projeto foi um destes. Era tanto entusiasmo, paixão e volição, que ela e outros tiveram a impressão de que este professor-pesquisador-coordenador, mesmo sem salário, continuaria trabalhando para dar seguimento ao que acredita; eles puderam enxergar olhos emocionados, quase lacrimejantes, neste mestre-pesquisador, ao contar detalhes do projeto que trabalha. Obteve a informação dos pesquisadores de que havia, sim, todo um cuidado na prospecção e no manejo quanto à fauna, flora, geologia e todo acervo biológico, com um forte estudo de impacto – ambiental e humano – iniciado em tempo para ser efetivo.

Em tempo: neste projeto, um bilhão de reais foi destinado para a área ambiental.

Ela contou também que a UNIVASF está absorvendo os próprios recém formados e que trabalharam desde o início com a transposição, garantindo um comprometimento excepcional.

Conversou também com uma promotora que fazia a conciliação com os desapropriados, que disse acreditar bastante no projeto, no sentido deste vir a verdadeiramente beneficiar a população. Em outras conversas, também trouxe a impressão de que o povo local estava confiante, acreditando que realmente a transposição era algo bom e viria, mesmo com atrasos, a melhorar a vida do sertão.

Depois de ela me contar t-u-d-i-n-h-o, nos mínimos detalhes, até se sentir completamente satisfeita (muitas e muitas... horas depois), pedi para July fazer uma síntese dos motivos para ela, agora, acreditar no projeto. Respondeu-me que, se antes achava que este era um projeto mais político do que tudo, nesta experiência descobriu que este possui, em sua base, além do forte estudo de impacto, um corpo técnico/executor comprometido, e este, segundo ela, seria a chave de tudo: COMPROMETIMENTO (ênfase dela).

Enfim, esta experiência, além de lhe trazer uma esperança justificada de que o projeto mude realmente a vida de milhões de pessoas, de tão rica para ela não tem o que pague: "Ow (lê-se 'ôul')! Foi maravilhoso sentir tanta paixão", confessou-me, expressando todo seu encantamento.

Esta foi a terceira e última transposição Juliana:

Da pré-concepção de ser a TRSF mais uma obra seca de potencial e caráter social, para a certeza de um projeto que, no mínimo, convence e entusiasma brasileiros altamente capacitados e cheios de amor por seu país, sua gente, e por seu trabalho transpositor.

Essa viagem, para nós, foi uma preciosa fonte de elementos relevantes, especialmente por se encontrarem fora do contexto das guerras política e midiática que praguejaram o Brasil da copa e das eleições. Estas informações, pinçadas honestamente “de dentro”, fazem (a meu ver) com que este texto tenha sua relevância e sua verdade e, assim, um porquê de vir a existir – uma pequena contribuição, mas ao menos estas experiências não morrem aqui: transponho-as do cárcere das lembranças e da efemeridade da palavra falada para a fisicalidade da linguagem escrita, apresentada na vitrine grande da websfera.

Infelizmente, o que se vê no Brasil desde sempre é a busca do benefício pessoal (do seu grupo político, de sua empresa, de sua classe), sem pensar – como bem disse Juliana – no benefício coletivo.

Com a reflexão derivada destes dados, enxergo que quando uma obra com bases técnicas firmes – segundo muitas vozes que se podem depositar valor – sonhada desde o império (1877), tentada por todos os governos depois da ditadura e que, indubitavelmente, trará maior segurança hídrica, resiliência socioeconômica, desenvolvimento e progresso para milhões de pessoas, é colocada dentro desta dinâmica contrária, corre-se o risco de matar a esperança e o futuro de toda essa massa humana que seria beneficiada; mas não só: destrói-se também um fantástico trabalho feito a inúmeras mãos, de pessoas que trabalham ali com paixão porque acreditam de verdade e que, com talento e espírito inquebrantável, não medem esforços para transpor do papel para a realidade uma obra com potencial de mudar o país e ficar na história.

São estes laboradores incansáveis que sentem – diretamente do olho do furacão – esta antienergia, mas não param de trabalhar em prol do que consideram importante e relevante, pois são movidos pela força vital que emana desta terra, para eles repleta de possibilidades inexploradas e de humanos merecedores de progredir sustentavelmente. Essa verdade, fato consumado, não pode ser refutada.

O que se podem inferir destes fatos? Tudo isso mostra que, indubitavelmente, existem outras transposições tão necessárias quanto esta debatida aqui (respeitando as opiniões diversas movidas por intenções positivas e com embasadas argumentações).

Transpor-se, enfim, para um novo patamar – mais elevado e mais bonito –  de Brasil e de brasileiros.

Espero que, juntos – a portadora da boa nova, Juliana, e eu, o escrevinhador desse causo – estejamos ajudando a trazer elementos de capacidade crítica através de informações privilegiadas de quem trabalha diretamente com o projeto e acredita no valor do que faz. Nosso paradigma norteador, desta maneira, é aquilo que apreendemos destas conversas “in loco”, e a base técnico-científica se sustenta nas revisões da literatura.

Este estudo me fez crer que o sonho do fim das vidas secas “a maior” virá quando for materializada aquilo que chamo de a “quadra redentora do Nordeste": revitalização, gestão, retenção e transposição, elevando o povo sertanejo para uma resiliência além da sobrevivência pura e simples, um salto para um novo patamar onde exista estabilidade social e econômica e seja, assim, possível crescer sustentavelmente e desenvolver-se em todos os sentidos.

Em suma, neste pequeno espaço-tempo aferido pôde-se ver e sentir que, mais que contratados para realizar um serviço, os trabalhadores da obra – de operários a cientistas – se vêem como portadores de uma missão histórica. Indubitavelmente, se fosse outro modelo de projeto leva-água para o sertão, eles estariam trabalhando com o mesmo amor e afinco para fazer funcionar, se nele acreditassem – simplesmente porque faz parte de suas naturezas.

Neste sentido, este texto poderia ser também, tranquilamente, intitulado como:

"Uma crônica sobre admiráveis brasileiros entusiasmados por participar da transposição de todas as secas”.

Nossas reverências – minhas e da protagonista que teve seu final feliz – a estes e a todos batalhadores que trazem consigo tais valores. Que eles não esmoreçam e continuem sonhando, se qualificando, trabalhando e crescendo para ajudar nesta empreitada de todos nós, brasileiros, para transpor o gigante adormecido em sustentável, dinâmico e justo colosso – porque os obstáculos são muitos e do tipo grandões.

E um beijo na Juliana! ;)

EdiVal
2014.

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